quinta-feira, 12 de maio de 2011

Conversando sobre poesia






Conversando sobre Poesia
Marisa Lajolo

Poemas, às vezes, contam histórias, como este que está logo abaixo. Sua autora é Adé­lia Prado, poeta que por muitos e muitos anos foi professora em Minas Gerais.
                                      Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
 desses que tocam trombeta, anunciou:
 vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
 esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
 sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
 acho o Rio de Janeiro uma beleza e
 ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
 - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
 já a minha vontade de alegria,
 sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Disponfvel em <www.releituras.com/aprado_bio.asp>.
Consultado em 15/9/2010.
Marisa Lajolo é professora de literatura. Leciona atualmente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, e é professora titular convidada da Unicamp. O livro que organizou junto com alunos e o professor João Luís Ceccantini, Monleiro Labala ­Livro a livro (ImespjFundunesp) - obra infantil -, em 2009, ganhou o prêmio Livro do Ano de Não Ficção da Câmara Brasileira do Livro.
Como ler a história de alguém que na hora do nascimento foi predestinado por um anjo a carregar bandeira? Carregar bandeira ... ?, pode estranhar o leitor, quando começa a leitura. Mas, já no quarto verso, esse leitor curioso tem uma primeira pista: o bebê: parece ser uma menina, uma bebeia ...
Escrito em primeira pessoa, como uma espécie de autobiografia, esse é um dos poemas mais bonito e mais conhecidos de Adélia Prado. Nele se ouve uma voz feminina, falan­do de si mesma contando (ou inventando) seu nascimento presidido pela profecia de um anjo. Mas... então é história de verdade?
tem direito de perguntar-se leitor.

Pergunta sem resposta: quando sê Iê um  poema, nem sempre as palavras significam o que parecem querer dizer.
Poemas parecem empurrar seus leitores para um estado de meditação que se pro­longa para muito além da leitura. O título deste - "Com licença poética" - parece mes­mo dar esse recado, a poeta avisa que está se valendo da excepcional idade do discurso poético. Parece aconselhar (com uma pis­cadela) o leitor a não tomar ao pé da letra, literalmente, tudo o que lê nos versos, pois poeta imagina, cria, inventa ... Inventa anjos esbeltos que tocam trombetas e atribuem destinos ... Anjos esbeltos?
O cenário no qual surge o anjo é um nasci­mento. Momento muito especial, o nascimento..-:'" de uma criança. Momento especial par o bebê que nasce, para os pais, para toda a fa­mília, e mesmo para a humanidade: é a celebra­ção da vida, a certeza de nossa continuidade na face da Terra.
Daí o nascimento ser tão celebrado em prosa e verso. Na história "Bela adormecida", por exemplo, fadas bondosas e uma bruxa malvada profetizam diferentes destinos para a recém-nascida: a princesinha vai morrer, ou vai dormir cem anos?, os leitores torcem. Ven­ce o vaticínio do Bem, e a menina fica ador­mecida até que o beijo do príncipe a desperta.
Também nesse poema de Adélia Prado há um destino traçado para a menina que nas­ce: o anjo esbelto anuncia que a menina re­cém-nascida vai carregar bandeira. O sentido da profecia é intrigante, cria expectativas:
Como é mesmo? Que bandeira é essa?, pode estranhar o leitor. De quem será a voz que, nos versos seguintes, questiona a propriedade da tarefa confiada à bebezinha? A voz femi­nina parece queixar-se, rebelar-se contra o destino proclamado? Aponta que carregar bandeira é cargo muito pesado pra mulher, justificando a queixa por ser a mulher uma espécie ainda envergonhada?
No ininterrupto diálogo de quem lê um texto com o que está escrito no papel, as perguntas
se multiplicam: como assim espécie envergo­nhada? E por que ainda? Vai deixar de ser en­vergonhada um dia?
A partir do sexto verso a voz que fala no poema parece alçar voo. E o leitor - sobretudo a leitora - talvez entenda (eu entendo assim ... ) que a base através da qual a voz feminina ganha asas é o cotidiano e um modo de ser feminino. Feminino, brasileiro, interiorano, doméstico, familiar.
Nascida numa cidadezinha de Minas Gerais, chamada Divinópolis, desde que publicou seu primeiro livro (Bagagem, 1976), Adélia Prado vem surpreendendo a crítica e encantando leitores. O encanto e a surpresa talvez venham da originalidade de sua poesia, marcada ao mes­mo tempo pelo feminino e pelo misticismo, juntando num mesmo texto anjos que tocam trombetas e mulheres envergonhadas.
Em "Com licença poética" sucedem-se alu­sões ao mundo feminino: beleza, casamento, parto. Nascida em 1935, Adélia Prado é de uma geração de mulheres educadas para o casamento, tendo marido e filhos como único horizonte.
É a partir desse destino feminino preordenado que o 11º verso introduz um novo ponto de interrogação. Aberto pela adversativa "mas", sinaliza que o discurso vai enveredar por outros caminhos: mas o que sinto escrevo. Por que mas? Por que escrita é ruptura? Por que escrever sentimentos é desobediência? Nós, leitores, somos senhores da resposta. E a minha é que sim, que escrita é ruptura e deso­bediência. Ainda que possa também ser sina. Nessa interpretação, a escrita aqui anun­ciada como ruptura e desobediência introduz um conjunto de versos nos quais a voz feminina , celebra sua realização: ao proclamar inauguro linhagens, fundo reinos, o poema pode sugerir ao leitor - de novo sobretudo à leitora - um papel feminino não apenas de perpetuadora da espécie, mas de semeadora de alegria.
            Juntando os dois, parece que o poema celebra a alegria de perpetuar a vida, uma alegria
ancestral, que data do início da humanidade sobre a Terra: minha vontade de alegria/vai ao meu mil avô.(ou à minha mil avó... reescreve a leitora ousada!). Pode-se, assim, ler o poema como uma  celebração do feminino. Ou, talvez, se possa ir um pouco mais além e imaginar que se trata de uma celebração, no feminino, da vocação poética. Celebração da mulher­-poeta e da poesia feminina.

Retomando a leitura, o leitor fortalece a impressão de que se trata de um texto sobre poesia; a hipótese se sustenta e até se reforça já a partir do título: "Com licença poética".
Leitores familiarizados com a poesia bra­sileira percebem, desde o primeiro verso des­se poema de Adélia Prado, que ele dialoga com outro poema: o "Poema de sete faces", de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que abre seu primeiro livro, Alguma poesia, publicado em 1930:

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Disponível em <www.revista.agulha.com.br/drumm1. html#poemadesetefaces>. Consultado em 15/9/2010.

Relendo essa primeira estrofe do poema de Drummond, o leitor vê que Adélia Prado meio que parodia o poema do poeta mais ve­lho. Em algumas passagens - por exemplo, o verso que reproduz o vaticínio do anjo -, pare­ce mesmo inverter seu significado: o anjo dele é torto, o dela é esbelto; o dele é dos que vivem na sombra, o dela dos que tocam trom­beta. O dele condena a criança que nasce a ser gauche (isto é, ser deslocado), e o dela proclama o destino de carregar bandeira ...
Nesse diálogo de poemas, o penúltimo verso de Adélia Prado reescreve radicalmen­te o verso Vai, Carlos! ser gauche na vida do poema de Drummond: na mão da poeta, ser gauche (palavra francesa que se pronuncia gôche) transforma-se em ser coxo. Gauche e coxo são palavras que têm sons parecidos e ambas conotam uma situação negativa, em­bora uma seja francesa e outra brasileira.
Assim, nesse seu final, o poema de Adélia Prado sublinha a oposição entre o universo feminino e o masculino: ser coxo na vida é mal­dição pra homem I Mulher é desdobrável. Des­dobrável como?, pode perguntar-se o leitor. Mas, se o leitor é uma leitora - não precisa de quem lhe responda a pergunta -, sabe no cor­po, na cabeça e no coração o que quer dizer a poeta. Sabe o que é ser desdobrável, como também soube, nos versos 6 e 7, o que era Aceit(ar) os subterfúgios que me cabem, / sem  precisar mentir.
Nessa proclamação da alegria do feminino, da plenitude do ser mulher, pode-se reto­mar a interpretação inicial: o anjo tinha ou não tinha razão ao vaticinar uma bandeira nas mãos de Adélia Prado?
Decida quem lê!
Cabe a cada leitor, na solidão de sua leitu­ra, atribuir um significado ao que lê. E, no de­sempenho dessa tarefa (e direito) de leitor,  ele costuma recorrer a outros textos. E, no caso, pode misturar, por exemplo, os anjos esbeltos de "Com licença poética" com os óvnis e galinhas de "Harry Potter".
"Harry Potter"?, pode espantar-se o leitor ... O caso é que no seu mais recente livro de poemas (A duração do dia, Record, 2010) Adélia Prado tem um poema intitulado "Harry Potter", o que pode intrigar quem torce o nariz para leituras populares. Pois então a poeta maior lê best-sellers?
Parece que lê e gosta. E gosta a ponto de fazer sua obra dialogar com o bruxinho inglês, da mesma forma que já o fizera com o anjo torto de Drummond!
É só conferir no poema abaixo e depois anotar na agenda um lembrete para buscar mais textos de Adélia Prado. Prosa e poesia. Quem sabe, entre eles, o livro Quando eu era pequena, para ler com seus alunos?

Harry Potter

Quando era criança
escondia-me no galinheiro
hipnotizando galinhas.
Alguma força se esvaía de mim,
pois ficávamos tontas, eu e elas.
Ninguém percebia minha ausência,
esforço de levantar-me pelas próprias orelhas,
tentando o maravilhoso.
Até hoje fico de tocaia
para óvnis, luzes misteriosas,
orar em línguas, ter o dom da cura.
Meu treinamento é ordenar palavras:
Sejam um poema, digo-lhes,
não se comportem como, no galinheiro,
eu com as galinhas tontas.


In: A duração do dia. Rio de Janeiro: Record, 2010, pag.41
(Revista Olimpíada de Língua Portuguesa – Escrevendo o Futuro “ Na ponta do lápis” ano VI – número 15 – p. 27 a 29 – dezembro de 2010)




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